José Silva, 42 anos, morou por uma década nas ruas do Ceará e hoje é tenente; conhecido como "Já Morreu" no passado, agora dá palestras sobre sua história
De “Já Morreu” a Tenente Silva foram 42 anos. Antes de galgar a patente de oficial da Polícia Militar do Ceará, em 2004, José Gonçalves da Silva, 55, ficou órfão, morou na rua por mais de uma década, passou fome, foi preso injustamente e apanhou da própria polícia.Nesse meio tempo, sem nunca ter frequentado a escola, trabalhou como gari, engraxate, lavador de carro, cobrador de ônibus e foi ajudante de pedreiro. Quando se tornou policial militar, precisou lidar com o preconceito dentro da corporação.
“Eu tinha receio de dizer que fui morador de rua. Quando era soldado, o cabo poderia me discriminar. Promovido a cabo, poderia ser o sargento, e assim por diante”.
Do passado de morador de rua, Silva guarda lições compiladas em um livro que escreveu sobre sua trajetória. Ele dá palestras em escolas e clinicas de recuperação de dependentes químicos, contando sua história como exemplo.
“Durante toda minha vida, nunca fumei nada. Nunca usei droga”, diz. Silva tem três filhas adultas e formadas, graduou-se em História e é lotado no Colégio da Polícia Militar do Ceará, no bairro Padre Andrade, em Fortaleza, onde trabalha como coordenador disciplinar.
“Já Morreu”
Caçula de seis irmãos, Silva deixou o distrito de Baixio das Palmeiras rumo à sede do município, no Crato (a 504 quilômetros de Fortaleza), aos sete anos, após perder a mãe e, anos depois, o pai. “Eu não queria continuar naquele lugar”.
Na cidade, por ser magro e usar roupas surradas, ganhou o apelido de “Já Morreu”, dado no interior do Nordeste a pessoas com baixa expectativa de transformação social.
“Já Morreu” viveu por 12 anos nas ruas do Crato. À noite, dormia na Igreja da Sé. Durante o dia, vagava pelo centro da cidade fazendo biscates e pedindo esmola. Quando o sacristão o expulsou do templo, passou a dormir no cemitério. E assim foi até conseguir, aos 11 anos, um emprego de gari na prefeitura. Então, o caminhão de lixo lhe deu guarida.
Alfabetizado
Aos 15 anos, quando o então presidente Médici (1969-1974) teve a ideia de ligar a região Norte ao restante do País por uma estrada, Silva se juntou a outras centenas de trabalhadores em algum lugar no meio do Estado do Pará na construção da rodovia Transamazônica. A empreitada durou seis meses, ele juntou pouco dinheiro e voltou. “Foi quando alguém, mas não lembro quem, me deu a luz para ir estudar”, relembra.
Ainda morando na rua, Silva foi cursar o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização).
Prisão
Com o que aprendeu de cálculo, escrita e leitura, conseguiu o melhor emprego da vida, até então, como porteiro de um pequeno hotel ainda hoje em funcionamento no Crato. O estabelecimento sofreu um assalto e as suspeitas recaíram sobre Silva. Ele foi detido, espancado pela polícia que, sem provas, teve que soltá-lo.
“Eu larguei o emprego e troquei por outro, mas uma semana depois aconteceu um assalto lá e a dona do hotel deu queixa contra mim. Eu acabei preso e apanhei muito dos policiais. Até que o verdadeiro ladrão foi encontrado e confessou o crime”, recorda.
Silva lembra que sua ex-patroa se desculpou pelo que houve. “Mas isso marcou. O preconceito marcou e a surra também”, diz. “Não foi só porque era pobre, mas pela minha cor”, acredita ele.
Oficial da PM
Em 1976, próximo de completar 18 anos, alistou-se no Exército. Serviu no Tiro de Guerra do Crato - organização militar que forma reservistas para atuar na defesa e civil. “Foi o período em que mais passei fome na minha vida”, conta. “Mas foi só aí que eu pensei que podia ser um policial. Não era um sonho meu de infância”, admite.
Ao deixar o serviço militar, arranjou um emprego como cobrador de ônibus em Fortaleza e, com isso, uma nova possibilidade de estudar. Com a renda do trabalho, conseguia pagar os estudos em um colégio particular.
Lá, ele chegou à série que corresponde atualmente ao sexto ano do ensino fundamental. Suficiente para prestar concurso para soldado da Polícia Militar em 1979 e ser aprovado.
Silva não parou de estudar, fez supletivo e recebeu o diploma de Ensino Médio. Em 2004 era oficial da PM. Anos depois, ingressou na Universidade Vale do Acaraú (UVA) e, em 2011, concluiu o curso de História.
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