A morte da polícia militar Fabiana Aparecida de Souza, de 30 anos, na
segunda-feira (23), assassinada com um tiro de fuzil no peito, próximo
à sede da Unidade de Policia Pacificadora (UPP) da comunidade Nova
Brasília, no Complexo do Alemão, pode não ter sido um fato isolado.
Foi a primeira baixa entre os policiais recém-contratados,
especificamente para atuarem nas UPPs. Como o governo está sendo
pressionado a ampliar estas Unidades - o secretário interino de
Segurança Pública, Roberto Sá, revelou ao jornal O Globo que aumentará o
efetivo policial lotado nelas - isto acaba sendo feito sem os devidos
preparos. Desta forma, aumentam os riscos e a falta de infraestrutura
para quem ali trabalha.
Este outro lado da moeda foi relatado ao Jornal do Brasil por um destes
policiais militares formados às pressas para atuar em uma das 21 UPPs.
Ele, aqui identificado como "X" para evitar represálias, conta, por
exemplo, o que já é voz comum dentro da corporação: algumas UPPs estão
entregue às baratas, como a do Complexo do Alemão.
Fuzil travado
A questão da falta de estrutura começa no próprio armamento com que
estes policiais podem contar. Por conta da ordem de “não ostentar
armamento”, cada guarnição só dispõe de um fuzil. Todo resto do efetivo
conta apenas com pistolas, cada uma com dois carregadores. No dia dos
ataques à UPP do Alemão, como já se sabe, os fuzis dos policiais
travaram e não funcionaram.
“Não tem (armas) para todo mundo. É um fuzil para cada guarnição, e os
que têm, travam, dão pane. No dia em que atacaram as duas UPPs, os
policiais trocaram tiro, e depois de cinco ou seis disparos, as armas
travaram”, revelou o que soube entre os colegas.
Segundo o policial "X", a relação de problemas é extensa no cotidiano
das UPPs. Um que salta aos olhos - e é difícil acreditar em tempos de
comunicação multimídia - é a de que poucos rádios funcionam. Segundo
ele, a grande maioria dos aparelhos só recebe chamadas, sem conseguir
entrar em contato com outras estações, inclusive as que estão nas
"viaturas policiais".
A falta de sinal não é o único problema: “Não tem rádio para todo mundo.
Às vezes, não tem a bateria reserva, e de noite o aparelho está
descarregado. Já trabalhei sem rádio, por exemplo.”, afirma.
A assessoria de Imprensa do Comando de Polícia Pacificadora (CPP) nega
que sejam insuficientes os rádios e as baterias. Também informou que "a
quantidade de armamento é definida de acordo com as necessidades. Não há
falta de fuzis". Admitiu que as armas falharam, a causa, porém, é
"desconhecida e está sendo investigada".
Spray controlado
Outra questão levantada pela fonte do JB está no excessivo controle do
uso do spray de pimenta, tido como uma possibilidade de dissolver
multidões e distúrbios civis de forma menos violenta. Os policiais
precisam justificar, em documento, a quantidade utilizada e o motivo. E
só há um para cada guarnição. No caso de uma grande agitação, eles não
dispõem de bombas de gás lacrimogênio, necessárias para dispersar
aglomerações. "Muitas vezes, apartamos as confusões na mão mesmo.",
diz.
Ao rebater a denúncia, a assessoria do CPP destacou que "os policiais da
UPP não são policiais de confronto e guerra, e sim de mediação e de
relação com as comunidades. A opção pelo uso do spray de pimenta e do
"taser" (pistola de choque) no lugar da bomba de gás lacrimogênio é
exatamente para minimizar atos de violência. É necessário o controle dos
equipamentos para não haver uso abusivo", diz a nota.
Benefícios não pagos
Além do equipamento precário, o policial conta que muitos colegas que
têm direito a R$ 200 por mês para a alimentação, há seis meses não
recebem. O mais crítico é que não há um lugar onde os policiais de
algumas UPPs possam comer. No caso do Complexo do Alemão, além de faltar
opção à alimentação, ele conta ser comum que policiais militares
utilizem o banheiro do teleférico, pois não há sanitários disponíveis
nos postos (contêineres) de policiamento.
“Na hora do almoço, há casos de policiais que comem no chão porque não
têm onde comer ou ficam dentro dos contêineres, cujos ar-condicionados
funcionam mal. É um absurdo”, diz.
Nas explicações enviadas ao JB pela assessoria do CPP, ocorre, sim, a
falta de pagamento, mas ela é específica: "As UPPs do Complexo do Alemão
são recentes e é necessário um trâmite junto à Secretaria de
Planejamento e Gestão (Seplag) do Estado para que o valor adicional pago
para a alimentação seja incluído no salário dos agentes. Esse trâmite
demandou um tempo, mas já foi resolvido e eles terão o auxílio
alimentação depositado em suas contas, junto com o próximo salário",
justificou o comunicado, acrescentando que "as novas sedes possuem copas
estruturadas com micro-ondas, geladeiras, mesas e cadeiras".
Segundo a nota, o pagamento do auxílio transporte no valor de R$ 100 tem
sido realizado regularmente. "Se algum policial não está recebendo, ele
deve procurar a base administrativa da unidade em que está lotado para
que o caso dele seja avaliado e solucionado".
Outra gratificação que, segundo a fonte do JB muitos PMs ainda não viram
a cor, foi a ajuda prometida pela prefeitura do município, no valor de
R$ 500. Na quarta-feira passada (25), o prefeito do Rio, Eduardo Paes,
prometeu aumentar a quantia para R$ 750. Pareceu promessa de campanha
eleitoral pois, segundo o policial "X", vários de seus colegas jamais
receberam qualquer valor.
Burocracia
Outro obstáculo do serviço, diz a fonte, é a burocracia. Se ele estiver
insatisfeito no lugar em que está lotado, o pedido de transferência lhe
criará problemas. Segundo relata, "aí é que não recebo o que me devem
mesmo. É um dinheiro com o qual não se pode contar", revela. O mesmo
acontece com as férias, que, segundo a fonte, é "outra burocracia".
O policial "X" informa que, pelo mesmo motivo - burocracia -, não pôde
retirar da loja a arma que comprou para utilizar fora do serviço. Ele
tem direito a andar armado, mas só pode pegar o equipamento após ser
liberado um documento específico da PM. A pistola, comprada no início do
ano, continua estocada na loja, por conta do atraso do papel.
Formação
O policial "X" também faz duras críticas ao curso de formação dos
soldados da UPP. Sua preparação durou nove meses, sendo que nos três
últimos, diz que não fez nada. Apesar da pouca ênfase dada nas ações
práticas, ele considerou que teve uma boa formação teórica.
“Foram três meses em que ficamos à toa lá, sem fazer nada. As aulas de
tiro foram muito básicas. E a matéria de sobrevivência urbana, que
ensina conduta de patrulhamento na cidade, não teve nenhuma aula. Teve
turma que se formou e foi jogada imediatamente dentro do Complexo do
Alemão, sem qualquer prática anterior".
Morte da soldado
No caso da morte da soldado Fabiana Aparecida de Souza, a fonte do JB
analisa que a policial, ao sair para lanchar desacompanhada, contrariou
as condutas de segurança do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar
do Estado do Rio. “Não podemos andar sozinhos na favela. Ela foi pega
desprevenida. O que falam é que ela deu de cara com os traficantes”.
Ele também disse que o tráfico de drogas permanece em algumas
comunidades, em especial no Alemão, onde, segundo os policiais ali
lotados, em dois meses de atividade já ocorreram, pelo menos, confrontos
com trocas de tiros, mas sem nenhuma baixa de policial.
“Aquele lugar ali (Alemão) é o quartel-general do Comando Vermelho. O
tráfico continua na cara de pau. Em dois meses, já soubemos de, pelo
menos, quatro trocas de tiros com traficantes", relata o que ficou
sabendo. “À noite, as trocas de tiro são com fuzil. Mas ninguém sabe
porque a CPP sempre abafa as notícias, muitas vezes porque é a Globo
quem vai noticiar, e ela é conivente com o governo”.
A assessoria do CPP não desmente a existência de traficantes, apenas
ressalta que, "com as UPPs, acaba a venda aberta de drogas e o ir e vir
de bandidos armados à luz do dia. Tráfico de drogas é um problema
mundial que não se resolve da noite para o dia".
"Caldeirão de merda"
O policial "X" conta o comentário feito por um sargento do Batalhão de
Operações Especiais (BOPE) para um grupo de soldados lotados na UPP do
Alemão, que já demonstra a situação a que estão sujeitos: "jogaram vocês
no caldeirão de merda!".
Na reflexão que faz sobre a política de pacificação das comunidades, diz
que na maioria delas "a única coisa que funciona é o governo ter
entrado (nas favelas, antes dominadas pelo tráfico). Aí, cobra IPTU, a
Light conserta o relógio de todo mundo, regularizaram Internet, e acabam
os desfiles de bandido com fuzil. Mas continua a mesma coisa. Os
bandidos só não andam com fuzil, mas têm pistola de calibre pesado, como
.45.”
Segundo ele admite, em algumas destas áreas onde a polícia não tinha
acesso, "muitas armas permanecem escondidas, bem como marginais que
nunca haviam sido fichados antes". Isto ocorreria, por exemplo, no
Alemão onde, segundo contam os policiais ali lotados, “poucas pessoas
passam e dão bom dia e boa noite. Ninguém quer falar nada. Todo mundo é
conivente com o tráfico de drogas. Quando se vai abordá-los, muitos saem
em defesa dos bandidos. Sei que no começo da UPP é assim, mas ali é
demais”.
Menina dos olhos
Ao final do relato, ele desabafa: “Não tem estrutura, todo mundo está
insatisfeito. A maioria não ganha nem ajuda de custo da passagem. Tem
gente pagando para trabalhar. Na Zona Sul, por exemplo, é diferente.
Tudo funciona, porque a Zona Sul é a menina dos olhos do governo”.
Jornal do Brasil